8 de julho de 2007

"Quando a polícia mata"




Esse foi o título do único livro que meu falecido pai, José Barbosa do Rosário, lançou em vida. A obra descreve o suplício, a agonia, o assassinato lento, horroroso e diabólico de Francisco do Rosário Barbosa, irmão de José e meu tio paterno. E também a luta da família para fazer justiça e prender os criminosos. O livro é de uma crueza brutal, possuindo uma seção anexa com fotos e documentos.

Meu pai foi um daqueles sertanejos cultos de Minas que invadiram o Rio na década de 60. No Rio, estudante de filosofia e ativista político, filiou-se ao partido comunista e, em 64, algumas semanas antes do golpe, ganhou uma passagem aérea e uma bolsa para estudar em Praga, na República Socialista da Tchecoslováquia. Livrou-se assim de viver o período mais negro da ditadura. Quando voltou, em 69, o movimento comunista estava totalmente desmantelado, tendo refugiado-se na clandestinidade e na insurgência. Bom matuto que era, Barbosa preferiu correr atrás do pão-nosso-de-cada-dia e se afastar de qualquer atividade política visível. Trabalhava muito e, como outros milhares de brasileiros, procurava lutar nas sombras pelo fim do regime militar.

E assim o tempo passa, José vai se destacando em diversos jornais: Correio da Manhã, Jornal do Brasil, até que acaba enredado nas poderosas garras do Jornal O Globo, onde trabalhou por quinze anos como Repórter Especial de Comércio Exterior. Neutralizava a rebeldia de seu espírito com pesadas doses de uísque importado, uma esposa doce e compreensiva e dois filhos alegres e saudáveis. Ajudava ativamente seus nove irmãos a se educarem e, assim, começarem uma vida nova na cidade grande, longe das ignorâncias e injustiças do sertão de Araguari. De vez em quando, dava uma força a um amigo ou parente procurado pela polícia política.

Até que um dia, o destino veio lhe cobrar, em sangue, o tributo por sua felicidade burguesa. Na madrugada de 7 de fevereiro de 1981, seu irmão mais novo, a quem tanto ajudara no angustiante processo de adaptação à vida confusa da metrópole, foi brutalmente assassinado por agentes da Polícia Militar do Rio de Janeiro.

O crime foi particularmente chocante porque Francisco não exercia qualquer atividade política. Era um rapaz, de certa maneira, bastante ingênuo, que escrevia poesia e sofria um grande desespero metafísico de ser e estar no mundo. No entanto, Francisco não tinha sangue de barata, nem era um estúpido alienado. Em seu íntimo, e nas conversas com seus amigos, odiava profundamente a ditadura e suas brutalidades. Na noite em que foi morto, ele dirigia-se do trabalho, em Maria da Graça, subúrbio do Rio, para sua casa, em Copacabana. O ônibus em que viajava foi parado por soldados do 13º Batalhão da Polícia Militar, na Praia do Flamengo, que fazia uma blitz na área.

As palavras são do meu pai:

"Os policiais entraram no ônibus pedindo a identificação de todos os passageiros. Segundo o motorista do coletivo, Juarez Emmerich, Francisco teria exigido uma explicação para aquele comportamento dos policiais e se recusou a mostrar seus documentos. Foi preso, retirado à força do ônibus, e dali levado para a 9º Delegacia de Polícia do Catete, por volta das 3 horas da madrugada.

Chegando à delegacia, algemado, foi brutalmente espancado com um pedaço de pau, segundo o detetive Felisberto Pereira, no seu depoimento no inquérito posteriormente instaurado - pelo carcereiro Antônio Carlos Mantuano, porque não aceitava a prisão e dizia impropérios contra a polícia e o regime militar. Francisco recebeu golpes por todos os lados. Conforme os legistas que examinaram seu cadáver, no Instituto Médico Legal, do Governo estadual, apresentava também sinais de queimaduras, o que leva a supor de pontas de cigarro aceso. A unha da mão esquerda foi arracanda com violência.

Embora detido, sua presença na Delegacia não foi registrada, como prescreve a Lei. Todo machucado, foi levado por uma viatura da PM para o hospital Souza Aguiar, no centro da cidade, onde foi deixado nas proximidades do portão de entrada.

Francisco conseguiu chegar à recepção do hospital, anunciar seu nome e ainda reunir forças para dizer que fora "espancado pela polícia na Praia do Flamengo". Logo após essa única frase, desfaleceu, sendo levado para o Centro de Tratamento Intensivo do HSA, onde morreu 15 minutos depois de traumatismo craniano, conforme constataram os mesmos legistas do IML.

A morte de Francisco foi uma entre dezenas de acontecidas nesta cidade, resultantes da brutalidade policial. Todas ficaram impunes, com raríssias exceções. Decidmos lutar para que os criminosos fossem condenados. É uma luta que dura há quase dois anos".

Meu pai ganhou essa briga. Depois de três anos de idas e vindas processuais, cinismo e lentidão por parte do Estado, abnegação e energia por parte de José e seus inúmeros amigos jornalistas, advogados, políticos, pessoas de bem, os dois responsáveis foram condenados a alguns anos de prisão. Foi uma dessas "raríssimas exceções" citadas por José em seu livro.

A luta foi bem sucedida, naturalmente, porque José era um jornalista influente do principal jornal do país, e possuía amigos também influentes nos meios políticos e jurídicos que o ajudaram a fazer justiça. A única retificação que faria ao texto de meu pai é que não são "dezenas" de vítimas da violência policial, mas "milhares".

E aqui vem a parte principal desse artigo, que é denunciar a violência policial da gestão Rosinha & Garotinho, nos dias de hoje.

Com toda essa balbúrdia em torno das práticas ilegais & populistas de Garotinho pra ganhar eleição, e que, graças a Deus, não estão sendo bem-sucedidas, a mídia está se esquecendo que o pior do governo Garotinho não é o populismo oportunista. Essa até é a parte menos ruim. Para o pobre, qualquer ajudinha é bem vinda, mesmo que fosse o próprio Diabo a dar. O que é gritantemente ineficiente, injusto, ilegal, prejudicial ao estado e ao país, é a política de segurança unilateral, corrupta, brutal, insana, que o casal Garotinho vem praticando.

Em vez de proteger os milhares de turistas que estão desembarcando no Rio à procura de diversão, felicidade, cultura e lazer, e que constituem a matéria-prima do que poderá a vir a redenção econômica do estado, Garotinho está consumindo todo o poder policial num combate estéril, estúpido, inútil, e terrivelmente oneroso em vidas (tanto para policiais quanto para inocentes) contra o narcotráfico regional.

Garotinho deveria deixar o combate ao narcotráfico exclusivamente para a polícia federal, e usar a polícia para proteger os turistas. O combate ao narcotráfico, como a Rosinha mesmo já admitiu, passa por ações federais contra a lavagem de dinheiro e a entrada de armas e drogas, as quais vêm de fora das fronteiras fluminenses.

Garotinho: tire a polícia do morro! Não é possível matar todos os traficantes do estado. Além do mais, essa "pena-de-morte" extra-oficial não resolve nada. As elites cariocas adoram ler sobre morte de traficantes, mas não entendem que, quando a polícia mata um traficante, está causando grande dor e revolta na comunidade e na família da qual ele faz parte, e esses sentimentos fomentam a reprodução da criminalidade. Cria-se um efeito multiplicador. É preciso que a política de segurança se volte para ações sociais nas comunidades carentes. É preciso uma polícia penitenciária que trate o criminoso como gente, não porque ele é bonzinho, a gente sabe que ele é mau e talvez não mereça, mas pelo bem da comunidade e da família da qual é parte integrante, pelo bom nome do Estado e das autoridades.

A galera do Complexo do Alemão sabe que o tráfico é um problema, mas sabe também que invasão policial só piora as coisas. É preciso uma intervenção social, não do tipo evangélico-populista que Rosinha faz, obrigando as escolas públicas a abandonarem a teoria darwinista e forçarem os meninos a acreditarem na história de Adão e Eva, mas um intervenção republicana do século XXI, com computadores, internet, alta cultura, cinema, alimentos nutritivos, empregos, creches. Aliás, um problema muito grave nas comunidade é do engravidamento precoce. Há necessidade de planejamento familiar por um lado, e creches, de outro, além de outras ajudas governamentais às mulheres grávidas.

Ainda temos dois anos de governo Rosinha. Que Deus ilumine o casal e que eles tenham humildade e inteligência para mudarem a política de segurança. Em caso contrário, o governo federal terá que intervir.

PS: Os interessados em adquirir o livro "Quando a polícia mata", de José Barbosa do Rosário, publicado em 1983, Editora Achiamé, 110 páginas, favor fazer um pedido por email.

1 comentário

Anônimo disse...

Gostei muito, vejo que Miguel não nega sua raça e está dando continuidade ao trabalho do pai.

Parabéns!

Malves

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